Artigo originalmente publicado no AGROPORTAL
Recentemente o Governo divulgou o conjunto de medidas que irão dar corpo à pré-anunciada “Reforma da Floresta”. Num gesto que se saúda, este “projeto de reforma das florestas” foi colocado em discussão pública por um período de três meses, findo o qual o Governo e a Assembleia da República, cada qual nas suas competências, legislarão.
Contas feitas, e pelo que se pode ler atualmente no Portal do Governo (http://www.portugal.gov.pt/pt/consultas-publicas/florestas/cm-florestas.aspx), são 10 os diplomas novos ou que se alteram. Outros foram anunciados (regime dos sapadores florestais e aumento da comparticipação financeira anual para manter essas equipas), mas foram excluídos desta discussão.
Sobre o enorme equívoco do que é uma reforma
O primeiro grande equívoco está precisamente na designação dada a este conjunto de medidas: o conjunto de propostas em causa estão muito longe de poder constituir uma Reforma do que quer que seja. Trata-se de um conjunto de diplomas avulso, cujo alcance conjunto não se vislumbra. Até estou genericamente de acordo com o conteúdo de algumas das propostas efetuadas (com outras estou completamente em desacordo), embora muitas delas sejam perfeitamente marginais (para não dizer inócuas) em relação aquilo que realmente importa para o sucesso da Floresta em Portugal. Pela sua vacuidade e conjunto de contradições, esta “Reforma” espelha bem a falta de peso e de importância política deste sector. De facto, a designação adotada tem uma óbvia implicação: admitindo que um governo não pode andar a reformar as Florestas todos os anos, esta designação remete-nos para um enorme vazio para os próximos 3 anos. Ou seja: em matéria florestal, está feito. Se isso significar que as Florestas vão deixar de ser moeda de troca ideológica entre os partidos que suportam o Governo, talvez até não seja mau de todo.
Da leitura que faço, nas iniciativas legislativas agora propostas são percetíveis alguns trações preocupantes:
- Recolocam-se as autarquias no centro da decisão em matéria florestal, ou não estivéssemos em ano de eleições autárquicas;
- Proíbe-se, numa medida avulsa, a expansão da área de eucalipto, passando por cima daquilo que os Planos de Ordenamento Florestal venham a estabelecer, e sem cuidar do que irá acontecer nos territórios em que não existam alternativas economicamente rentáveis;
- Mantém-se “o dispositivo de prevenção” completamente separada do “dispositivo de combate” aos incêndios, contrariando a opinião expressa dos peitos nestas matérias;
- Ignora-se por completo que a competitividade económica é uma condição de base para o sucesso das várias Florestas que temos no nosso território;
- Marginalizam-se os produtores florestais e as suas organizações do centro das soluções que se propõem.
- Omitem-se os meios adicionais (financeiros e humanos) que serão postos à disposição dos diversos intervenientes envolvidos na floresta.
Na impossibilidade de analisar aqui, com pormenor, as diversas propostas, limitar-me-ei a uma análise de conjunto, de acordo com o impacto que, do meu ponto de vista, algumas delas poderão vir a ter.
Sobre a inocuidade da generalidade das medidas propostas
Incluo nesta categoria a maior parte das medidas agora propostas. Consubstanciam a máxima segundo a qual se deve mexer em alguma coisa para que nada de significativo mude. E aproveita-se para deitar fora algumas iniciativas do passado e erguer algumas “obras do regime”. O expoente máximo nesta matéria é a “Proposta de Lei” que cria o Banco de Terras, a Bolsa de Terras (aproveita-se e reverte-se a Lei aprovada pelo anterior Governo) e o Fundo de Mobilização de Terras. Para além da gritante debilidade jurídica do diploma, porquê criar um Banco de Terras? Não seria a Bolsa de Terras suficiente para o objetivo visado? As terras em causa (as do Estado, ou as “sem dono conhecido”) podem ser colocadas na Bolsa de Terras (como aliás o prevê explicitamente a “Lei da Bolsa de Terras” e a “Lei das Terras sem dono conhecido”) para serem depois disponibilizadas aos privados (qualquer que seja a sua natureza jurídica). Cheira a “obra de regime”. Mas aparecerão certamente juristas a explicar a enorme diferença entre os dois conceitos. Quanto ao Fundo de Mobilização de Terras (um instrumento financeiro destinado à aquisição de mais terras por parte do estado, alimentado pelas contrapartidas da cedência a terceiros dessas mesmas “terras”) é uma ideia interessante, mas que vai enfrentar enormes dificuldades: as “terras do Estado” vão manter-se escondidas em diversos ministérios, o Estado não vai vender o seu património (o pouco que for disponibilizado será, talvez, arrendado), pelo que nunca vai haver Fundo(s) para comprar.
Igualmente inócuo em matéria florestal é a mais uma vez prometida criação do Sistema de Informação Cadastral Simplificado. Se resultar (água mole em pedra dura…) poderá ser muito útil para muitos propósitos, mas tendencialmente inútil para resolver qualquer um dos problemas da Floresta.
Mais uma reforma da legislação das ZIF: redução das áreas mínimas e do número mínimo de proprietários, eliminação dos Planos Específicos de Intervenção Florestal, e inclusão das autarquias, como peça dita essencial. Vai mudar alguma coisa? Formar-se-ão, talvez, mais ZIF. As autarquias, enquanto novas eventuais “entidades gestoras” poderão encontrar aqui mais uma forma de se financiar. Não há dúvida que estamos próximos de eleições autárquicas. Será também por isso que (re)aparece um regime especial e extraordinário para a instalação e exploração, por municípios (por quem havia de ser num ano de eleições?), de novas centrais de valorização de resíduos de biomassa florestal. Como as anteriores foram um enorme sucesso, há que porfiar…
Um Plano Nacional de Fogo Controlado é criado através de uma proposta de Resolução de Concelho de Ministros. Fica bem formaliza-lo. Mas é bom que tenhamos presente que o ICNF, todos os anos, supervisiona e executa um plano de fogo controlado, aproveitando as janelas de oportunidade que o clima permite e as escassas disponibilidades financeiras de que dispõe. Não é por ter direito a uma “Resolução de Conselho de Ministros” que o Plano passa a ter meios adequados. Nada de novo, portanto. Dão-se uns retoques no Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, genericamente bondosos. Fica por tomar a decisão que se impõe, em matéria de criação de um dispositivo único e especializado de “prevenção e combate a incêndios”. Meios adicionais? Nada. Altera-se o regime jurídico dos PROF, PGF e PEIF. Com que consequências para a Floresta? Da minha leitura, nenhumas. Absolutamente nenhumas.
Sobre a quase-bondade de uma medida
De entre as medidas propostas, há uma que encerra uma perspetiva com a qual me identifico, embora a concretize de forma, em meu entender, errada. Refiro-me à redução da fiscalidade associada às novas “Sociedades de Gestão Florestal” (SGF). Defendo o princípio de que a Floresta (bem) gerida deveria beneficiar de uma total isenção de taxas e impostos (sobre o rendimento, sobre a propriedade e sobre as transações), enquanto forma de remuneração dos bens públicos produzidos. E isto, independentemente da sua dimensão, das espécies que a constituem e do veículo jurídico que as gere. Se tal fosse previsto na atual “reforma da floresta”, de forma estrutural e não conjuntural, evitava-se a criação de mais um veículo jurídico (SGF), apenas constituído para poder ser alvo de uma isenção parcial dos referidos impostos. Dir-me-ão: mas não é bem assim, porque as SGF terão que gerir determinado número de “parcelas” de pequena dimensão, pelo que esta medida apoia a gestão da pequena propriedade dispersa. E então? Acaso um hectare de floresta inserido numa pequena propriedade é mais importante do que um hectare incluído numa propriedade de maior dimensão? Muito gostamos todos de complicar o que podia ser simples.
Sobre a pura maldade de uma medida
Pois é. Uma das propostas é mesmo má. Falo da alteração proposta para o Regime Jurídico das Ações de Arborização e Rearborização (vulgo RJAAR ou “lei da eucaliptização do país”). Não é mazinha, nem é inócua. É má. Má para a Floresta (essa entidade mítica de quem o legislador se apodera com tanta frequência), má para os proprietários florestais, má para as associações de produtores florestais, má para a indústria de base florestal (toda ela, e não apenas a da pasta e do papel), má para o emprego, má para a economia. Mas é boa para o Ambiente, dir-se-á. Não é. Até para o ambiente é má. Então é boa para a paisagem. Nem isso, como veremos.
Sem menosprezar alguns pormenores interessantes (o aumento para 5 hectares do limiar mínimo de área que, se não estiver disso explicitamente excecionada, poderá ser (re)arborizada apenas com recurso a comunicação prévia), e outros inócuos, o grande objetivo da revisão deste diploma nunca foi escondido: proibir a plantação de eucaliptos. A este, juntou-se agora um outro: reintroduzir os pareceres vinculativos das autarquias nesta matéria. É caso para dizer que, em ano de autárquicas, as autarquias são as grandes beneficiárias de não-reforma da floresta. E para que não restem dúvidas, é criado o artigo 3ºA que, no seu nº 1 estabelece “Não são permitidas as ações de arborização com espécies do género Eucalyptus s.p.”. Com uma exceção: se forem por compensação de substituição de outras áreas ocupadas com a mesma espécie (e fora da Rede Nacional de Áreas Protegidas, Rede Natura 2000 e Regime Florestal), a decidir pelo ICNF.
O que ganha a floresta e os produtores florestais com esta restrição? Nada. O que irá acontecer às áreas do nosso país que, com aptidão para o Eucalipto, não encontrem melhor uso? Abandonam-se. Que ninguém duvide. O Ambiente ganha com isso? É preferível uma área abandonada do que uma área bem gerida de eucalipto, se para tal existir aptidão? Não, não é. Ganha a paisagem, pois vamos proteger os olhos urbanos das grandes extensões de eucalipto? Não. O abando é esteticamente feíssimo. E o lavrar dos incêndios nessas áreas não será espetáculo melhor. Ganha a biodiversidade? É óbvio que não. E as indústrias de base florestal, que assentam nas outras espécies (nomeadamente no pinheiro bravo e no sobreiro), ganham alguma coisa? Antes pelo contrário: não haverá nem mais um hectare de pinhal nem de montado pelo facto de se proibir o eucalipto. Haverá apenas mais frustração e desmotivação por parte dos produtores florestais. E o abandono a que serão votadas áreas crescentes do nosso território apenas promoverá um maior risco de pragas, doenças e de incêndios para a floresta remanescente. É assustador a facilidade com que o legislador brinca com o futuro da Floresta. O futuro aí estará para o provar. Mas o argumento que tem vindo a ser apresentado, por parte do Governo, para justificar esta injustificável decisão ainda é mais inaceitável: proibimos mais área de eucalipto para que possamos centrar-nos no aumento da produtividade da que atualmente existe. Mas o que é que uma coisa tem a ver com a outra? Se um produtor gerir mal o seu “eucaliptal”, passa a gerir melhor só porque é proibido que outros instalem novos eucaliptais? Já vi desculpas melhores…
É ainda criado o artigo 22º-A, segundo o qual “Após incorporação das normas específicas dos PROF nos respetivos PDM, compete aos municípios, adaptar as ações de arborização e rearborização às especificidades do seu território.” Sem mais detalhe. O que significa “adaptar as ações de arborização e rearborização às especificidades do seu território”? Na aparente simplicidade deste enunciado, cá temos de novo as autarquias guindadas a decisores em matéria de política florestal. Ao abrigo deste artigo, iremos ver recrudescer inúmeros regulamentos autárquicos que se traduzirão, como no passado, num apoderamento do espaço privado que constitui a generalidade da Floresta em Portugal.
Sobre o que não consta desta reforma
A propósito da proposta de alteração ao Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios (ligeiramente maquilhado), perdeu-se a oportunidade de reformar o “sistema de prevenção e combate”, seguindo a voz quase unânime de todos os especialistas que nos meses recentes se têm pronunciado sobre esta matéria. Tudo ficará na mesma: os meios, os poderes, a bicefalia…e os incêndios.
Sobre os baldios, nada. Sobre a regulação das relações comerciais e a procura de equidade nas fileiras comerciais, nem uma vírgula. Sobre políticas dirigidas à sanidade dos povoamentos florestais, zero. Sobre o fomento de outras atividades económicas relacionadas com outros recursos florestais, nem uma palavra. Por não fazerem parte da “Reforma das Florestas”, só podemos concluir que, do ponto de vista do governo, tudo isso vai bem “no reino de sua majestade”.
Para terminar, realço a completa ausência, no âmbito desta putativa reforma, dos produtores florestais e das suas associações. Como reformar a floresta, que é privada, sem centrar, de forma crescente, a ação nestes agentes e nas atividades económicas que desenvolvem? Está igualmente ausente o foco no território e na sua diversidade. Faltou a clarividência (ou a coragem?) para identificar as ações que se impõem nos diversos territórios e para criar os instrumentos de política que viabilizassem a sua concretização.
É caso para dizer: contra-reforma das florestas, já!
Francisco Gomes da Silva