Nota: Este texto foi originalmente publicado em www.agroportal.pt.
Sei que o título é forte. Sei, também, que me arrisco a ser mal interpretado por muitos dos que lerem este texto. Mas as coisas são o que são: ser agricultor e afirmar-se por produzir matérias-primas alimentares, ou ser produtor florestal e estar focado na produção de rolaria ou na extração de cortiça são atividades que, hoje por hoje, se converteram em verdadeiros pecados sociais. Pode-se sê-lo (até porque os censores-mor do reino, normalmente bem instalados na vida, necessitam de comer e de satisfazer outras necessidades básicas, algumas delas exigindo papel) mas não convém apregoá-lo.
Quem tiver a ousadia de produzir e de assumir publicamente que é para isso que desenvolve a sua atividade de agricultor ou de produtor florestal, e não colocar sobre isso uma valente camada de blush ambiental, rapidamente será apontado a dedo como um delapidador dos recursos naturais. Mesmo que essa maquilhagem se venha a traduzir, como muitas vezes acontece, num contrassenso para a própria preservação dos recursos naturais. E um dia, todos pagaremos por isso.
Passo a explicar-me o melhor que consigo.
Já há largos anos (mas mesmo muitos) que as questões ambientais fazem parte do dia-a-dia dos agricultores e dos produtores florestais. Saudavelmente, nestas como em muitas outras atividades económicas, essas questões ambientais eram assumidas como restrições àquelas que eram as suas “funções de produção”. Foi assim que foram evoluindo, dentro dos saberes da agronomia e da silvicultura, as tecnologias que garantiram a capacidade de produzir cumprindo as sucessivas restrições ambientais que o tempo foi, e bem, moldando. Foi assim que as questões da conservação do solo ganharam espaço, que as práticas de fertilização se racionalizaram, que o modo de proteção (e depois produção) integrada evoluiu, que os equipamentos de rega e respetivas tecnologias de apoio se sofisticaram. É também assim, e ainda sob o mesmo racional, que a agricultura e a silvicultura de precisão vão ganhando o seu espaço: permitem produzir mais, com ganhos sucessivos de eficiência, com maior rentabilidade e cumprindo com as restrições de caráter ambiental (e outras) que a legislação determina. Se e quando os produtores prevaricam (e sim, volta que não volta prevaricam) são, ou deviam sê-lo, penalizados por isso. Mas estes produtores sempre tiveram um foco bem definido: produzir produtos agrícolas e produtos pecuários (quase sempre matérias primas alimentares), produzir madeira, produzir resina, produzir cortiça, e por aí adiante. E isso sempre foi motivo de orgulho, nunca de vergonha.
Nos anos mais recentes tudo parece ter mudado. De súbito, é como se a “função de produção” de produtores agrícola e florestais passasse a ter como variável objetivo o “ambiente” (nas suas diversas e mui nobres dimensões), passando tudo o resto a ser um pormenor. É como se a alimentação tivesse passado a ser um luxo dispensável. E pior, é como se muitos dos ativos ambientais que hoje valorizamos não tivessem sido, eles próprios, resultado da ação produtiva destes agentes económicos. Hoje, um agricultor ou um produtor florestal para ter “palco” tem que falar de duas coisas – recursos naturais e digitalização – e evitar uma a todo o custo – produção. Se assim o fizer, a sociedade fica deleitada.
Tivemos, neste mês de Março, dois exemplos claros daquilo a que me refiro: o dia internacional da água e o dia internacional das florestas (perdoem-me os puristas se a designação oficial não for esta). Em ambas as “efemérides”, e por razões óbvias, a agricultura (maior utilizador de água) e a floresta (como o nome o diz) estiveram em foco. Para falar da produção de alimentos que a água permite, ou de como garantir no futuro o acesso a água para continuarmos a produzir esses alimentos? Para falar da produção de madeira, papel ou cortiça que sem a floresta não poderíamos utilizar nas nossas vidas? Não. Isso implicaria utilizar a palavra PRODUÇÃO, que é coisa que a nossa sociedade, de tão sensível, não aguenta ouvir. Em particular em Portugal, que somos um País rico e farto, dispensamos bem essa fixação de alguns em produzir. E o mundo, satisfeito e bem alimentado, também dispensa essas frescuras.
Não me interpretem mal. Sou dos que acham que os recursos naturais têm mesmo que ser bem geridos (e melhor do que o foram no passado). Sou dos que pensam que as restrições ambientais são essenciais para cuidarmos desses recursos. Acredito na bondade das políticas públicas que estimulam as boas práticas, nomeadamente as ambientais. Acho também que é perfeitamente aceitável que exista quem seja apenas (ou essencialmente) remunerado para “guardar e gerir” esses recursos. Não tenho, nesta matéria, nenhum preconceito, e a minha prática profissional fala por mim.
Mas também sou daqueles que consideram que o conhecimento e a tecnologia têm sabido encontrar as respostas adequadas para a maioria dos “problemas ou impactos ambientais” que a produção agrícola e florestal têm vindo a colocar. Sou dos que não concordam com a visão simplista de que “tudo se resolve” (versão antiga do “vai ficar tudo bem”) se mudarmos o A de agricultura pelo A de ambiente. Sou, portanto, dos que acreditam que os agricultores e os produtores florestais podem e devem continuar a orgulhar-se de ter a palavra PRODUÇÃO no centro da sua atividade, e que não têm que se travestir para poderem ser ouvidos e respeitados pela sociedade que integram. O desafio da alimentação à escala global está longe de ser vencido, e não foram os necessitados, os famintos ou os malnutridos do nosso mundo que baniram a palavra PRODUÇÃO do léxico público.
É um orgulho quando agricultores são notícia pela boa gestão que fazem dos recursos. Mas seria um orgulho muito maior se os agricultores e os produtores florestais fossem reconhecidos na sociedade por aquilo que são na sua essência. Mas para isso teria a sociedade que ter a noção de que a Alimentação (e já agora, o papel higiénico) não “nascem” nas prateleiras do supermercado e não são um dado adquirido. Nisto a pandemia pouco ou nada nos ensinou. Nem na alimentação nem no papel-higiénico.
Francisco Gomes da Silva
DIRECTOR GERAL
fgsilva@agroges.pt