Parece mentira ser necessário, por vezes, explicar a importância da verdade. Tal, não deveria acontecer na vida de uma sociedade saudável. O simples facto de termos uma civilização com alguns milhares de anos, assente num código moral e ético que premeia a verdade, deveria ser suficiente para que todos soubéssemos que essa é uma linha a não ultrapassar. Mas não é isso que acontece, com importantes consequências para todos, e, hoje em dia, com grande peso, em particular, para os agricultores.
O agricultor vive um confronto diário com a verdade. Se não conseguir fazer as operações culturais de forma atempada, se não detectar uma praga ou doença a tempo de a combater ou se não tiver estabelecido as relações certas no mercado e não conseguir vender a produção, então não haverá forma nenhuma de choro ou de negação que façam com que não perca dinheiro. Talvez até, possa não conseguir estar a produzir no ano seguinte.
Ainda assim, o agricultor pode fazer tudo bem e correr tudo mal. Basta que venha frio fora de tempo estragar a floração; basta que não chova e a pastagem não nasça ou não cresça; basta que um país distante, cuja produção determina o preço de um certo produto, tenha um ano de produção record e destrua o preço. Qualquer um destes eventos pode ser catastrófico, de uma forma incontornável, para o agricultor.
Esta realidade faz com que seja indispensável que seja a verdade a guiar toda a legislação e regulamentação que recai sobre a agricultura. Caso assim não seja, a desconexão entre as regras e a realidade produtiva só pode resultar em perdas de produção e no empobrecimento dos agricultores. Agricultores esses que são quem produz os alimentos, logo quem deveríamos querer preservar!
As pessoas esquecem-se, com demasiada frequência, que o objetivo principal das políticas agrícolas que nos têm regido desde a adesão à CEE, é o de haver comida em quantidade e qualidade abundantes. Não obstante existirem outros objectivos envolvidos, nomeadamente de coesão territorial e de protecção ambiental, a disponibilidade de alimento abundante e barato é um ponto fulcral da PAC. Esse facto faz com que toda a construção de políticas agrícolas deva ter uma dose de realismo e deva ser adequada à atividade de produzir alimentos. No entanto, isso tem-nos escapado de forma crescente, nos últimos tempos.
Bons (ou maus!!) exemplos deste desligamento entre a verdade e a política vêm de todas as iniciativas em que a abordagem técnica é abafada pela visão ideológica, com efeitos terríveis para o sector agroflorestal e para o consumidor. Isto acontece quando se combate a plantação de certas espécies por motivações políticas como o eucalipto, a oliveira ou o abacate, entre outras. Acontece também quando a política nacional sobre o uso da água de rega anda ao sabor dos ventos da caça ao voto e do populismo pseudo-ambiental (pseudo-ambiental porque não tenho dúvidas nenhumas que, pelo menos na realidade portuguesa, com uma integração agroflorestal tão forte, os agricultores são os verdadeiros ambientalistas, e não o são aqueles que usam o ambiente como forma de posicionamento social).
Iniciativas europeias, como a intenção de reduzir a aplicação de fitofármacos simultaneamente em quantidade, em diversidade e em risco (como se isso não fosse uma obvia contradição), também são, infelizmente, exemplos claros desta falta de aderência à realidade.
Existe, pois, um problema claro quando este desligamento entre a política e as pessoas impera: os efeitos não desejados ou previstos das medidas tomadas, o chamado efeito pernicioso da lei. Há uma expressão que ouvi pela primeira vez a americanos e que diz “garbage in, garbage out”. E é realmente verdade: por muito bom que seja o sistema, se lhe introduzirmos lixo como matéria-prima, o produto será sempre lixo. E porque (acho eu, mas começo a duvidar) não queremos viver no lixo, temos de partir de algo melhor. Temos de partir de pressupostos verdadeiros. A base do nosso planeamento tem de ser aderente à realidade e não a uma narrativa que assente bem em ideias bonitas e populares, mas erradas.
Mais uma vez (infelizmente), quanto a este ponto, a nossa governação está cheia de maus exemplos. Um deles é que, na corrida à neutralidade carbónica, se está constantemente a tomar medidas que vão atropelar o meio agrícola e a produção pecuária em particular, sem olhar aos efeitos colaterais que tal atropelo acarreta. Ao assinar o Global Methane Pledge, da iniciativa conjunta dos EUA e da EU, na COP26 (sei que agora se fala da COP28, desculpem o meu atraso), Portugal, assim como mais 110 países, comprometeu-se a reduzir em 30% as emissões de metano até 2030. Uma vez que cerca de metade dessas emissões vêm dos ruminantes, isso só pode ser obtido, mesmo considerando as eventuais melhorias da eficiência alimentar introduzidas com aditivos na alimentação animal, com uma redução drástica dos efetivos bovinos e ovinos. Ora, o estudo designado ECOPOL, promovido pela UNAC em 2020, mostrou que a redução drástica dos encabeçamentos nas áreas de montado tem um custo em perdas de balanço de carbono na biomassa do solo que podia ir até 4,1 t CO2eq/ha por ano (cenário de abandono do pastoreio do montado, comparado com um cenário de pastoreio com encabeçamentos adequados). Mais ainda numa altura em que todos falam de agricultura regenerativa, mas a maioria ainda não assimilou que esta, se for feita sem animais, tem impactos muito limitados. Estas medidas têm o efeito pernicioso de travarem o verdadeiro movimento de agricultura regenerativa no extensivo português e no montado, em particular.
Já agora, o mesmo estudo mostrou que o custo para a sociedade de não ter animais em pastoreio no sob-coberto de montado de sobro e azinho era de 194€/ha.ano e de 112€/ha.ano, respetivamente. Não obstante se poder discutir se o preço considerado na altura para a tonelada de carbono equivalente, de 46€/t, é ou não o que se deve considerar face ao mercado actual, este valor é tremendamente expressivo quando multiplicado pela enorme área de montado que Portugal tem a possibilidade de decidir gerir bem e não de debilitar com políticas desadequadas. Vale a pena, também, reflectir no facto deste benefício para a sociedade ser garantido por todos os agricultores que exploram os seus montados de forma equilibrada, sem que haja (ainda!) nenhum pagamento por esse serviço.
Enfim… tenho sérias, e crescentes, duvidas acerca do funcionamento da democracia quando os cidadãos se demitem da sua função de escrutinar o que faz o Estado. E nestas questões relacionadas com a agricultura, é aos agricultores que cabe fazer este trabalho. Mas onde estão os agricultores no discurso político de hoje-em-dia? Discutem em fóruns fechados sobre si mesmos e não chegam à sociedade civil nem ao poder político. É urgente que a agricultura consiga falar ao resto da sociedade, porque senão, de consequência não desejada em consequência não desejada, Portugal e a Europa vão caminhando lentamente para uma insustentável falta de segurança alimentar e para uma total desertificação do seu meio rural. E, admirem-se os menos conhecedores, o meio rural, que é o guardião do que se chama em linguagem das alterações climáticas de LUCLUF1, precisa de ter gente e de ser gerido se queremos algum dia estabilizar a questão do carbono: é a única área de acção humana (especialmente no nosso clima, onde o que não é gerido e guardado arde) que tem um efeito líquido sequestrador de carbono e não emissor!
Soluções procuram-se! Mas como não conseguimos chegar a lado nenhum sem dar um primeiro passo, parece-me que podíamos começar por ter um próximo Governo com um Ministério da Agricultura reforçado em responsabilidades e funções, que fosse capaz de voltar a integrar a floresta nas suas competências e que conseguisse dar ao meio agroflorestal português a importância que verdadeiramente tem, ao invés daquela que os nossos governantes lhe parecem actualmente dar.
Miguel Vieira Lopes
Colaborador Técnico
1 – Land Use Change, Land Use and Forestry