Ouvi no outro dia alguém dizer, a meu ver de forma brilhante, que vivemos num tempo em que toda a gente precisa de ter dados para justificar a sua existência.
De facto, hoje não há actividade humana que não tenha infográficos, estatísticas e posts a dizer o quanto é bom ou mau. Não me entendam mal, o conhecimento dos números que melhor descrevem qualquer actividade é, na minha opinião, muito importante. É fundamental descrever bem os problemas para os solucionar. No entanto, parece-me que esta vertente está a dominar demasiado aquelas outras componentes, qualitativas, baseadas em valores e cultura, que também fazem parte da importância das coisas da vida.
Um dos principais motivos para isto prende-se com o facto de nem todas as actividades, nem todas as pessoas, estarem apetrechadas para competir neste mundo dos dados. Será que valem menos por causa disso? Não me parece.
Pois bem, muitas actividades humanas caem assim num jogo que não podem ganhar, em que as regras fazem pender o tabuleiro contra elas.
Na agricultura sofremos amplamente deste problema. Em vários desses tabuleiros inclinados, os agricultores têm confrontos quase diários. Mas, há um que me tem incomodado particularmente, porque parece mais uma parede de escalada que um tabuleiro inclinado. Trata-se do balanço do carbono das actividades agrícolas.
Fazendo um aparte, antes de explicar o meu ponto de vista, gostaria de dizer que a actividade de produzir alimentos deveria ter um factor qualitativo que lhe concedesse um certo equilíbrio nos seus jogos que não pode ganhar. Devíamos partir para a batalha dos dados com um certo viés positivo sobre o que é o valor de haver agricultura e o papel que ela teve no desenvolvimento da civilização e que chega até aos nossos dias. Acho que esta ideia devia passar pela cabeça do cidadão comum antes de, ao se preparar para o dia-a-dia citadino, comer o seu iogurte de soja com granola do Equador (nada contra iogurtes de soja com granola do Equador) e criticar os sistemas agrícolas por serem desrespeitadores do meio ambiente. Mas isto é só a minha opinião!
Voltando ao assunto, penso que é muito injusta a forma como se calculam as remoções de carbono dos sistemas agrícolas, quando se compara com a forma como se calculam as suas emissões.
Na Agroges temos tido vários trabalhos de apoio a explorações agrícolas e agro-industriais na gestão da sustentabilidade ambiental da sua actividade e este é um problema recorrente. Por um lado, para as emissões, contabilizamos gastos energéticos, adubos, agroquímicos e, ainda, as emissões relacionadas com o ciclo de vida dos inputs, como os trabalhos de gestão, etc. Mas, por outro lado, as remoções são calculadas exclusivamente pela alteração do uso da terra em comparação com a situação de há vinte anos atrás.
Ora, este é o exemplo acabado de um tal jogo que não se pode ganhar. Isto porque no campo do sequestro, das remoções, a alteração de uso não explica quase nada. Muitas vezes o uso não mudou (era agricultura e continua agricultura). Outras vezes mudou, mas só se muda uma vez e, quando o agricultor quer fazer cálculos de monitorização anuais, esta métrica não é adequada. Esta metodologia, diga-se, não é uma que nós, na Agroges, inventámos. É a adaptação da APA ao GHG Protocol1, de acordo com as orientações do IPCC2 das Nações Unidas.
Faz falta, por isso, responder com investigação científica aplicada, a uma série de questões, de forma a que, no futuro, elas possam ser incorporadas nos cálculos:
- Quanta biomassa é incorporada no solo, ou pode vir a ser, vinda de podas e subprodutos das culturas permanentes?
- E no fim da vida útil de um pomar, há alguma utilização da biomassa que evite, total ou parcialmente, a emissão de todo o seu carbono?
- Qual o contributo positivo que várias culturas anuais têm para a manutenção dos sistemas agroflorestais (sumidouros de carbono) que temos em Portugal?
- Como podemos incorporar nos cálculos trabalhos como os que serviram de base aos projectos Terraprima, sobre pastagens biodiversas e controlo de matos sem mobilização?
- Que formas de contabilizar o sequestro e de incorporar inovação podem ser inseridas na metodologia para corrigir este problema?
Fica aqui o repto à academia e a quem a financia, porque se não formos nós a puxar pela nossa agricultura, teremos de ir a reboque do que se faz lá fora. Isso, parece-me, é muito pior para todos!
Miguel Vieira Lopes
Área Internacional
1- Greenhouse Gas Protocol (https://ghgprotocol.org/)
2 – Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (https://www.ipcc.ch/), da Organização das Nações Unidas