… ou sobre a necessidade de um lobby para a comunicação!
Sobre o que (não) mudou
Admito poder estar completamente enganado (e se assim for, peço desculpa a quem gastou tempo a ler este texto), mas a minha perceção é de que nada de substancial mudará, pelo menos para melhor, nas relações entre o setor agrícola e a sociedade portuguesa, na ressaca e em consequência da pandemia que nos tem infernizado a vida a todos (a uns mais do que a outros). Passo a explicar-me, o melhor que consigo.
Alguns de nós (agricultores, técnicos, dirigentes) têm vindo a dizer que “foi desta que a sociedade percebeu a importância do setor agrícola”. Esta frase tem sido normalmente utilizada em duas perspetivas distintas. A primeira traduzindo a eventual consciência que a sociedade terá ganho de que os alimentos só não faltaram à sua mesa porque os agricultores não pararam. A segunda, porque a sociedade terá percebido que, afinal, as emissões de carbono da responsabilidade do setor agrícola não são as principais responsáveis pelo aumento do nível de GEE na atmosfera. Em minha opinião nada disto se alterou, nem dá sinais que tenda a alterar-se. Comunicamos de forma deficiente, reagimos a “provocações”, não nos antecipamos na mensagem e, enquanto isso não mudar, não há razão para que a perceção da sociedade sobre a agricultura se altere.
Sobre a importância dos agricultores (portugueses) na garantia de alimentos
Neste domínio arrisco uma opinião absoluta: zero! Em minha opinião, a perceção da sociedade sobre esta dimensão em nada se alterou. Os agricultores eram uma “classe” distante, e assim continuarão a ser. É verdade que se valorizou, e muito, o papel dos caixas dos supermercados, e dos seguranças à porta que disciplinaram os acessos ao longo destes dois meses. Talvez, mas não sei se irá tão longe, se tenha valorizado o papel dos repositores de produtos nas prateleiras dos mesmos supermercados. Ou até mesmo dos motoristas que asseguraram os transportes sem quebras nas cadeias. Mas sobre os agricultores, não acredito que nada se tenha alterado. Como alguém me dizia recentemente, para isso era preciso que tivessem faltado alimentos à mesa da classe média durante alguns dias. Felizmente, tal não aconteceu. Infelizmente, isso reduziu a zero a perceção de que falo.
Recordo a última crise, iniciada em 2008/2009, que levou Portugal ao fundo dos fundos (achávamos nós). Na ressaca de tal crise (entre 2011 e 2015), a agricultura “fez maravilhas”, e até se tornou sexy aos olhos da sociedade, como se de uma mascote recentemente descoberta se tratasse. Os agricultores até passaram a ser peça central de reality shows. Pois sim. Foi a partir dessa altura (quiçá mesmo, em parte, em reação a alguma visibilidade acrescida) que se verificaram os maiores ataques e incompreensões por parte da sociedade de que o setor tem memória. Penso que nem são necessários exemplos. Será, então, que é desta? Lamento, mas acho que não. Todos estamos sequiosos de “normalidade” (seja ela o que vier a ser), também nas acusações que fazemos.
Sobre a irrelevância da agricultura nos níveis de GEE na atmosfera
Com a paralisação quase absoluta do tráfego aéreo e a redução massiva do transporte rodoviário e de muitas indústrias, de imediato se tornou evidente a enorme redução das emissões de Gases com Efeito de Estufa (GEE). Espanto? Nenhum. Nada de novo, uma vez que em todos os estudos sobre a matéria, estas “atividades” são sempre bem identificadas como as principais origens de tais emissões. Veja-se (leia-se) com um mínimo de atenção o Roteiro para a Neutralidade Carbónica (RNC2050) aprovado pelo Governo de Portugal. Rápido, o setor agrícola, num movimento instintivo de uma “vingança que se serve fria”, que se compreende, pegou nesta prova do que já estava provado e comunicou: afinal, a agricultura (e, em particular, a pecuária), que não pararam, não são os grandes responsáveis pelos níveis de CO2 na atmosfera. Pois não. São responsáveis sobre a fatia que lhes cabe, nem mais nem menos.
Do meu ponto de vista, embora compreensível, esta reação é tudo menos interessante a médio-prazo. O que o setor acabou por fazer foi apontar o dedo ao resto da sociedade (a tal que gostaríamos que nos olhasse de outro modo) e dizer-lhe: os culpados são vocês, não somos nós. Sim, é a sociedade que nós queremos seduzir que anda de avião e de carro, e que trabalha nas indústrias que pararam. Tal como no passado, e desculpem-me a enorme franqueza, podemos ter dado mais um tiro no pé. Não sou especialista em comunicação (muito longe disso), mas penso que perdemos uma excelente oportunidade para dizer à sociedade o que podemos ainda melhorar (e é muito) também nos domínios ambientais e, em concreto, nas emissões de GEE.
Nesta matéria sou ainda mais radical: a sociedade, representada por quem tem direito de antena, prepara-se para “nos cair em cima” ainda com mais virulência do que o próprio do vírus. Ou seja, também por aqui nada de novo.
Sobre alguns “sinais dos tempos”
Quem esteve atento ao que se passou ao logo destes meses, retirando o ruído ensurdecedor da Covid-19, conseguiu detetar um conjunto de sinais que corroboram este meu pessimismo. Darei alguns exemplos de seguida.
Logo no início de Março, várias vozes pediram que fossem revogados temporariamente um conjunto de compromissos “ambientais” (mas não só) assumidos pela generalidade dos agricultores no âmbito da PAC. Este pedido não surgiu para que os agricultores pudessem “estragar o ambiente”, mas para que pudessem concentrar todos os seus esforços na garantia da segurança alimentar do país. A resposta das autoridades políticas foi lapidar: poder discricionário para o IFAP “gerir” alguns desses compromissos, mas não alterar nada de significativo na matéria. Ou seja: o reconhecimento da tal importância do setor agrícola para garantir a alimentação em tempo de crise não existe. Ponto.
Nestes dois meses, mais do que uma voz se levantou no panorama internacional (ONU, FAO, CE para coitar alguns) e no panorama nacional para reforçar a imperiosidade de que a retoma da economia se faça assente em princípios mais ambiciosos, em matéria de clima e ambiente. Nada contra. Mas poucas vozes com igual peso se ouviram a clamar que tal recuperação teria de dar garantias de alimento às famílias e de sustento aos agricultores. Não são coisas incompatíveis, como nós sabemos. Mas as vozes da sociedade mantêm o foco, em mais um sinal do que acima afirmei.
Circulou ontem (13 de maio), nas redes sociais, um “slide” exibido numa aula do programa “Estudo em casa” (transmitido por um canal de televisão público), que traduz o absurdo do olhar da sociedade sobre a agricultura. Reproduzo aqui esse slide, que quase dispensaria qualquer comentário, como mais uma evidência que nada de substancial mudou nesta relação.
Tudo isto é consensualmente negado pela ciência. Isso não impede que esta mensagem continue a circular em aulas da telescola, entusiasticamente apregoada pelo Professor que estava de serviço e traduzido em linguagem gestual. Estes e outros conteúdos de igual calibre constam também de diversos manuais do ensino básico e secundário. É grave? É gravíssimo, pelas razões que todos conhecemos. Mas é mais um sinal de que nada de substancial mudou com a atual crise. Este episódio deu origem a indignação entre nós, e mereceu, por parte do Professor Pedro Fevereiro, uma carta aberta ao Ministro da Educação e ao Ministro da Ciência e do Ensino Superior (pode ler aqui).
Mais um exemplo, caso fizesse falta. Ao longo deste período de pandemia todos fomos acompanhando o anúncio das diversas medidas, e o destaque e tempo de antena que foi dado aos diversos protagonistas da cena política nacional. Para este efeito não é relevante a qualidade ou a eficácia das referidas medidas. Existiu, a nível governamental, algum momento de protagonismo para a Agricultura, denotando o tal reconhecimento que terá passado a existir por parte da sociedade (começando pelos decisores máximos do reino)? Nada. Atenção que não estou a dizer que deveria ter havido. Constato apenas que tal não aconteceu. A razão, do meu ponto de vista, decorre do peso político que a agricultura não tem: não tem no eleitorado e não tem no Governo. Nenhum.
Termino, com mais uma constatação: o processo de reforma da PAC, que está em curso, e que tão determinante será (como tem sido) na sustentabilidade e competitividade do setor agrícola nacional. Não interessam, para agora, tecnicidades sobre as decisões que estão em discussão nem sobre o maior ou menor envolvimento do setor na sua discussão (o setor tem o envolvimento que quer ter). Interessa sim termos presente que, fruto das competências atribuídas aos membros do Governo de Portugal, teremos pelo menos dois ministros com voz ativa nas decisões sobre os instrumentos de política em causa e de como serão alocadas as verbas da PAC entre esses instrumentos: o peso-pluma político que é a Ministra da Agricultura e o peso-pesado político que é o Ministro do Ambiente e da Transição Climática. Ou se repete a história de David e Golias, ou “temos a burra nas couves”! Repito: não se trata aqui de fazer juízos de valor sobre este facto, nem tem a ver com os dois seres humanos aqui referidos. Trata-se apenas de tornar claro que não vale a pena criar ilusões quanto à visão que a sociedade terá, depois desta crise, sobre o setor agrícola.
Sobre um lobby para a comunicação clara e assertiva
Os equívocos acima referidos decorrem certamente de um desconhecimento profundo, por parte da sociedade, daquilo que é hoje a agricultura e das exigências de segurança que sobre ela se aplicam. O pior erro que podemos cometer é dizer que a culpa é da sociedade. A culpa é nossa, que não encontrámos ainda uma forma eficaz de mostrar o que fazemos e como o fazemos.
Não ignoro que, para além desta nossa incapacidade comunicacional, existe uma extraordinária capacidade de comunicação por parte de alguns grupos que ativamente trabalham para este status quo, mesmo que utilizando mentiras ou meias-verdades. Mérito deles, mesmo que mentindo. Mas somos nós que temos de mudar e que fazer diferente. Não podemos ficar à espera que esses grupos parem de comunicar bem aquilo que comunicam ou que, por milagre, a sociedade resista a essa comunicação eficaz para nos dar razão.
Não desvalorizo as inúmeras iniciativas que têm sido desenvolvidas, por agentes diversos no setor agrícola, que visam este objetivo de comunicar melhor com a sociedade. Mas é pouco e, essencialmente, é disperso e errático. E, às vezes, tem efeitos contrários aos desejados.
A resposta a algumas questões essenciais poderia ajudar-nos a todos nesta tarefa: qual é a mensagem clara que queremos transmitir em cada momento? Qual a forma e o canal adequado? Quem é o destinatário para cada mensagem? Qual o momento adequado? A que “provocações” devemos reagir? Quem são os nossos mensageiros ou, como hoje se diz, os “influencers” que temos connosco? Na “ciência” da comunicação nada disto deve ser deixado “ao coração”. Tudo deverá ser conduzido pela “razão”.
Há já muito tempo que deixámos de fazer a agricultura como os nossos avós faziam. É importante que deixemos de comunicar como eles faziam. Organizemo-nos. Ou dito de um modo mais claro: criemos um lobby para a comunicação.
Francisco Gomes da Silva
DIRETOR GERAL DA AGROGES